LáNoIcuí
Era 1998 quando cheguei ao bairro do Icuí. Eu tinha 11 anos. E mesmo já saindo de uma realidade periférica, eu nunca tinha visto uma rua como aquela. Uma estrada, na verdade. A Estrada do Icuí Guajará, o final da linha do bairro, que só tinha um ônibus possível. Eu já escrevia àquela época. E lembro que a cor do chão de piçarra e a quentura dos primeiros dias, a grande vala que passava em frente a minha nova casa, a ponte que eu tinha que atravessar e o silêncio soturno, me deixaram sem escrever por meses. Até eu entender que ali era um outro lugar e habituar minhas estranhezas.

O tempo passou, cheguei aos 20 anos e fui embora. Para voltar hoje, depois dos 30, e morar na mesma casa, com meus avós que desde então permanecem naquele endereço. Durante o tempo que passei longe desenvolvi a consciência de mim, mulher, preta, artista-trabalhadora-autônoma, periférica. Nunca deixei de escrever. E percebi algo que me incomodou: foi preciso sair do lugar para entender que venho dele. E que eu nunca escrevi sobre ele – ou seja, sobre nós.

(na verdade, nós nem nos conhecíamos).

E voltar hoje, depois dos 30, e morar na mesma casa. Encontrar ali não só os meus avós, mas a mesma vizinhança, e seus novos filhos e netos. Mas também muita coisa mudou. No meu setor não temos mais pontes. Asfaltaram a estrada, que já é cortada por uma rodovia – a Independência. E já temos três linhas de ônibus. Pra além disso, já não sei mais. Vejo um fluxo enorme de pessoas indo e vindo, não conheço ninguém. Para chegar em casa, continuo percorrendo o bairro inteiro, até ao final da linha do Icuí-PresidenteVargas ou Icuí-VerOPeso, passo por granjas, sítios, barracos em transformação, comércios, igrejas, escolas, praças, e gentes.

Este projeto quer ultrapassar as janelas do ônibus e contar histórias valorizando as experiências das pessoas e seus próprios relatos. Criar artisticamente uma carto.grafia sociocultural do Icuí para contar a história de ocupação e desenvolvimento do bairro a partir das narrativas de seus moradores, principalmente os mais antigos - testemunhas de um lugar em constante transformação, desde a paisagem mista, rural e urbana, ao expoente crescimento da população e suas casas construídas a todo momento em todos os cantos.

Esmiuçar os caminhos do bairro, vielas, ramais. Desenhar e transcrever as narrativas. Um mapeamento humano. Uma grande carta escrita e desenhada do bairro do Icuí. Além de tudo, criar aqui um acervo, que pode ser acessado pelos moradores do Icuí e por qualquer outra pessoa. Uma memória afetiva do quanto está sendo bom nos conhecermos. Eu e Meu Bairro.


, é (quase) como aquele único ônibus que te leva para todos os lugares.
Quem inventou a fome são os que comem.
Carolina Maria de Jesus
s a b á
Sabá foi o primeiro, conheci no Bar da Lúcia. Chegou querendo assunto, contou conversa, deu até o endereço. Queria mesmo era dizer: “tenho 44 anos de Icuí. Vim de Marapanim pra cá. 6 de agosto de 76”.
Carregando um açaí na mão, um punhado de camarão na outra. Todo dia inventa coisa pra comprar na feira. Caminha um estirão só pra ver rua, ver pessoas.
Dá uma passada no boteco e diz “não bebo mais”.
Aposentado, velho contador de histórias. Os segredos, mantêm guardados. Tem jeito de quem sabe muito sobre muitos.
Não arranja confusão, não bate boca. Quer mesmo é bater perna no mundo
.
r o b e r t o
Mais que o bilhar, a calçada embaixo da árvore, o camarão seco de tira-gosto, os pen drives com as seleções de música, as melhores do passado, o teto baixo e as camaradagens, um tirando onda com a cara do outro, os clientes-amigos-em-seu-bar-preferido, sempre tem assunto pra tudo, a gelada gelada, todo tipo de cigarro, aquele banheiro clássico com trinco de fio amarrado no prego, a feira colada na saída do beco, passa puta bicheiro macumbeira trocando moeda moleque agilizando seus corres vendedor de dvd crentes evangelizando bikesom anunciando o açougue mandando abraço pedindo pra escolher música. Roberto é mais que isso. É por causa dele que isso existe. Não tem quem diga que aquele bar não é seu. Tem gente que nem sabe o nome do bar, mas o dele não se esquece. É ele a figura. Que impõe o ritmo das coisas, da quentura dos dias aos mormaços das tardes e serenos das noites. Abre o tempo todo. Se dá folga quando tem preguiça. O gingado do malandro com seu relógio largo no pulso, o anel no mindinho e o rebolado jogando as mãos pra trás só podem ser de quem inventou um mundo pra si onde se possa dançar.
r a q u e l
Veio em cima de uma caçamba. Sacolejavam mudanças no peito, a primeira filha de 2 anos, um futuro a Deus-Dará e ela.
Raquel veio em cima de uma caçamba com sua vida a sacolejar.
Pra uma casa sem piso e “com mato até em cima”.
Acorda todos os dias com as filhas crescidas. É avó.
E lembranças que se revezam no cotidiano de ausências.
Vinte anos sem ver a mãe.
A mudança foi no 2 de janeiro de 98.
Mas a saudade não acaba nunca, é mato crescendo até lá em cima.
g r é c i a
Há um barraco-casulo-refúgio no Beco Santo Antônio que ninguém acredita.
Tem a menina de 13, os gêmeos de 11, a menina de 9, a de 8, o Neco tá com 5, mais um de 3, outro de 2, e a caçula de seis meses.
A mãe é muito maior que seus 31 anos.
viveu entre bocas, o oxi e o crack.
Mas a natureza insiste, e a vida resiste.
Manteve o casamento. O carinho com a mãe. A criação e os filhos em casa.
E o sorriso como a maior arma. Alegria política de contar histórias passadas.
Manteve o sorriso e os sonhos.
Sobreviveu para vencer.
Venceu para continuar sonhando.
Mora num beco que tem janelas para o mundo.
d o n a l u í z a
Nada foi maior naquele dia do que ver
a pretitude daquela mulher de quase 70 com a caçula de seis meses no colo
no barraco da filha que lhe deu nove netos e uma vida quase inteira de oxi e crack.
o peso, o tamanho daquele mundo negro. a descendência carregada no lombo.
Dona Luíza é senhora de um destino que guinou.
Tinha o que era preciso pra dar errado, conveniente a esse mundo branco onde quem tem valia é o dinheiro.
No mundo preto, pobre e de madeira remendada sobre as cabeças famintas,
ajudar a filha a vencer um vício com o tamanho do sorriso que ela tem,
é surpreendentemente devastador.
b l a u b l a u
São 40 anos de barraca de peixe no Samambaia.
Acordando madrugadas, conhecendo alvoradas, atravessando as cidades.
Ananindeua-Belém.
Três/Quatro da manhã.
Sempre o primeiro ônibus.
Sempre no final da linha.
O que pensa o peixeiro até chegar ao VeroPeso e escolher mercadoria?
O que pensa ao voltar?
O que pensa o homem por trás do peixeiro em sua rede única no quadrado-kit-net solitário onde vive?
Onde vivem o peixeiro e o homem?
Entre a rede e a televisão, o ônibus da madrugada, o tabuleiro e o pitiú das águas.
Que canoa é esta onde se embala à beira de uma estrada?
p e d r o - b a r b e i r o
O Pedro-Barbeiro já foi pedreiro, ajudante de pedreiro, marceneiro, vendedor, carpinteiro.
Foi, voltou. Não consegue sair do Icuí. Trinta e sete anos, 20 de bairro.
Barba, cabelo, bigode, nó em pingo d’água, ainda resolve os problemas dos outros.
E deixa pendurar fiado.
Não à toa, rodou, rodou, rodou e fez ponto colado na rua que tem nome de sua própria busca.
Fica ali passando a Independência.
l ú c i a
Sempre atrás do balcão, num tom que aparentemente pode ser severo. É pulso firme de mulher dona de bar. Bar de tudo. Todo tipo de gente. Todos os turnos. Todas as famas. Todos os bolsos, vícios, necessidades. Da dose chorada de pinga à farinha com camarão. Não tem quem saia ileso. Vem criança fugida da mãe com trocado pro bombom, o cachorro correndo atrás rosnando pra todo mundo, o vizinho aposentado parou de beber mas não sai de lá, o motora do caminhão de frete no intervalo vira umas doses. O viciado compra um voxx só pra segurar a onda. O vizinho do miojo. A vizinha do modess. Quem faz rancho e quem não faz. O caderno de fiado. As tantas cores e garrafas com o fundo verde da parede. O isqueiro pendurado. Engradado, copo de plástico, calçada virando a esquina. Na dobra da periferia, Lúcia alimenta as fomes e alegrias sobreviventes.
Este projeto é dedicado ao Senhor Zé Pelintra e ao nosso povo guardião das ruas.
13 galo
14 gato
11 cavalo
9 cobra (2)
Carolina Maria de Jesus
O Boteco 100 TERRA fica na Tiradentes com Nossa Senhora das Graças
Carmem e Bela. Amor.
Carmem e Bela. Amor.
Carmem e Bela. Amor.
Na Invasão Guerreiro de Jeová, passagem Jesus de Nazaré.
Santana foi a primeira moradora.
Tomou territórios pra si, ocupou sua própria história.
rua Antônio Dias Jr., 50a 50b.
Veio de Cachoeira do Arari morar na encruzilhada da passagem Inês. Um filho com problemas neurológicos. Uma filha em recuperação de anos de dependência química. Nove netos. A vida é cheia de esquinas.
Lá pelo meio do bairro, contam que um certo João da Mata não respeitou o próprio nome e, sem pedir licença, mexeu com quem não devia. Rasgou floresta, morreu de picada de cobra.
Bom era aquele tempo de Icuí, só os compadres. Quem conheceu sabe. Zé da Mola Paulo Gago Dona Ruth Seu Waldomiro Seu Ataíde. Tudo vizinho. Um ajudava o outro. PAAR nem existia ainda. Era tudo mato e capoeira.
João comprou casa há 25 anos aqui. Só há 6 meses é que veio morar. Pedreiro e montador de andaime.Trabalhou por 18 anos no Ver-o-Peso. Depois foi correr mundo. Até hoje tem as mãos completamente inchadas.
raphíssima
Pesquisa, Criação e Circulação do projeto.

Silma Sena
Articulação Comunitária
Moradora do bairro do Icuí há mais de 30 anos.

Vilson Vicente
Design Gráfico
f i c h a t é c n i c a
a g r a d e c i m e n t o s
Lucília Marques
Fátima Rosa
Francisco Marques
Rosilene Cordeiro
Dani Black
Clara Morbach
Luézley Sol
escutas feitas em agosto de 2020.
verão amazônico. pandemia.
Projeto contemplado com o Prêmio Preamar de Arte e Cultura – Produção e Circulação, da Secretaria de Estado
de Cultura do Pará (Secult-PA).
ooooolha
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